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É aquele ditado: "Quem não tem crise existencial, bom sujeito não é"

Sempre que descubro um site que reúne registros imigratórios no Brasil, me animo com a possibilidade de encontrar documentos de algum antepassado para comprovar aquilo que consegui tirar, ao poucos, da memória de avós, tios e pais. Uma bisavó que veio da Espanha fugindo de uma guerra, um bisavô que veio da Argentina e outro que dizia ter sobrevivido a um incêndio no navio vindo da Alemanha, “acidente” que explicava sua pele escura, do tipo que sob a luz do luar faz todo menino negro parecer azul.

São histórias que ainda ouço daqueles que estão presente, mas com a cabeça no passado... Mas é pouco. Eu preciso e quero saber mais, para comprovar e provar quais são minhas origens.

O problema é que até hoje nunca encontrei algum documento que valida essas histórias. Nada. Todos os registros de antepassados que já tive acesso, se referem à vida deles aqui no Brasil, algo extremamente frustrante, principalmente quando vejo um conhecido enaltecendo suas (comprovadas) raízes familiares e culturais.

É frustrante porque, até então, como é possível que sendo do país da miscigenação, eu não consiga criar minha árvore genealógica multicultural? Felizmente descobri que isso é possível, principalmente, porque a ideia de miscigenação brasileira esconde uma estrutura de sociedade construída para apagar certas identidades e valorizar outras. E outra, como comprovar minhas origens sendo que minha identidade ainda não está muito clara? Explico:

Há apenas 2 anos me descobri negra.

O que é bem triste pois sou eu que habito minha existência e somente eu sinto como é ruim estar perdida em si mesma, estar perdida em relação à origem e ancestralidade.

Essa sensação, que descrevo como ‘pertencer não pertencendo’, descobri, é comum a afro-descendentes que, em dado momento, aceitam e reconhecem sua negritude e buscam formas de reafirmá-la ou construí-la após anos de desintegração e anulação. Minha experiência mais forte de apagamento identitário foi quando alisei quimicamente meu cabelo e, reverter essa ação, se transformou em uma oportunidade para assumir minha identidade.

*

No álbum "A Seat at the Table", da Solange Knowles, há um interlúdio que diz o seguinte:

“Se você não nos entende e não entende pelo que passamos, então provavelmente você não vai entender do que se trata este momento”

“If you don't understand us and understand what we've been through, then you probably wouldn't understand what this moment is about”

A música que segue esse interlúdio fala sobre a sensação de estar em um lugar no qual você sente que não faz parte, ao mesmo tempo em que você não tem ideia de um local de pertencimento para ir (uma das consequências do processo de desvencilhamento de raízes e identidades).

“Esta costumava ser nossa casa. Isto costumava ser o que conhecíamos. Era o que nos pertencia. Agora se foi // Eu não sei pra onde ir. Não sei onde ficar. Para onde vamos a partir daqui? Você sabe? Para onde vamos a partir daqui?”

“This used to be home. This used to be what we know. What used to belong. Now good and gone // Don't know where to go. And I don't know where to stay. Where do we go from here? Do you know? Where do we go from here?”

Essa é uma sensação que vem me acompanhando ultimamente e, por isso, estou buscando formas de entender para melhor conviver com esse sentimento (escrever este texto é terapêutico).

E se você não está entendendo nada do que estou falando é porque o texto do interlúdio faz todo o sentido, principalmente considerando o contexto de todas as mensagens do álbum da Solange, relacionadas à vivência da mulher negra.

Então este texto talvez não esteja falando sobre algo que você entenda ou vivencie. Mesmo assim peço que continue a ler, porque mesmo que você não entenda sobre este momento, de alguma forma você faz parte dele.

*

A cor da minha pele é clara e isso me protege de uma série de situações às quais meus irmãos de pele escura são submetidos. Tudo em razão do racismo e suas engrenagens, perfeitamente montadas para criar uma sociedade estruturada sob espectros de cor.

Portanto, como há pouco tempo que passei a me considerar negra, sem recorrer a termos que me embranquecem (morena ou morena clara, por exemplo), venho construindo minha identidade a partir da consciência de que sou negra, mas, que minha posição como mulher negra é privilegiada, devido ao tom da minha pele e também por outros fatores, como sociais, econômicos e educacionais por exemplo.

Possuo características físicas que me aproximam da negritude, mas, ainda assim, não posso igualar minha experiência de ser negra com a experiência de outros negros. É dessa forma que sigo na identificação dos meus privilégios, enquanto negra de pele clara, sem que eu deixe de me reconhecer negra e possa continuar construindo uma identidade através do reconhecimento de minha ancestralidade.

Por outro lado, algumas questões que envolvem minha vida também servem para me aproximar de uma identidade, de certa forma, mais branca: tive criação religiosa católica, cresci em uma sociedade ocidental, concluí um curso superior... Portanto, é importante que eu também reconheça esses aspectos para me entender dentro da sociedade e continuar construindo minha identidade sem sabotá-la ou aniquilá-la, como quando analisava meu cabelo ou testava fórmulas de deixá-lo menos “fuá”, conforme achava que ele era.

Mas veja bem, eu não estou falando da possibilidade de ter nascido branca e em determinado momento se caracterizar como negra. Não é isso! Isso é absurdo! Eu estou falando de crescer como uma menina de mãe branca e pai negro que, por muito tempo, acreditava não ser um nem outro, mas sim uma linda e alegre mistura, conforme o em um país lindo, alegre e tolerante quanto às suas diversas raças. Até aí tudo bem, mas, em que medida isso tem a ver com você? Explico:

Conforme li neste texto (que recomendo), a última frase lembra que “nós podemos aprender a encarar aquilo que nosso privilégio tem obscurecido”. / “We can learn to face what our privilege has obscured”

Seja qual for a natureza daquilo que nossos privilégios nos mantém protegidos, é possível (e necessário) reconhecer quando isso acontece conosco. Claro que você não tem culpa de ter nascido com a cor da pele bem clara, de ter crescido em um bairro tranquilo, ou de naturalmente se sentir atraídx por pessoas do sexo oposto. Você também não tem culpa que seus pais conseguiram (com muito trabalho e sacrifício, eu sei) pagar sua escola particular, cursinho ou faculdade. Mas convenhamos, tudo isso (ou apenas um desses itens) indicaria que você levou uma vida muito da privilegiada ultimamente não é mesmo? Então o que será que isso tem escondido de você?

*

Por mais que eu ainda continue na busca por provar minha ancestralidade, seja ela mais negra ou branca, mais brasileira ou espanhola, o que me interessa agora é construir uma identidade com base naquilo que se faz presente, naquilo que é e sou neste momento.

Já passei por situações em que tanto eu, quanto outras pessoas, buscaram alternativas para amenizar minhas características identitárias, e não quero que isso se repita. Também já presenciei momentos em que eu mesma ou conhecidos suavizaram o outro, evitando reconhecer a identidade alheia (que não nos cabe determinar). Evitar esses casos é difícil e nos obriga a rever crenças e costumes que há anos carregamos e nem percebemos.

Não é fácil e simples se repensar, se reavaliar e concretamente melhorar enquanto pessoa. Por isso acredito que quem não passa por alguns momentos de crise identitária, ou que não se desconstrói ao longo dos anos, bom sujeito não é. E não é uma árvore genealógica multinacional que nos concederia proteção contra reconhecimento de privilégios e aceitação da própria identidade.

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